Saúde coletiva sobre uma perspectiva de vivência negra

Quando penso em saúde, me vêm à memória de quando criança mainha e vó me levavam para a casa de uma curandeira que morava numa rua vizinha e, através de um saber ancestral que meu pobre viver não consegue explicar, me retirava gripes, mau olhados, anemias entre outros males emocionais e físicos utilizando algumas rezas, chás e ervas.

Lembro-me também que isso não era apenas algo realizado só por toda a minha família e parentela, mas também por quase toda a comunidade. Como uma espécie de alternativa coletiva às questões de saúde que por algum motivo não conseguiam explicar ou obter acesso a sua solução de uma forma mais “prática”.

Esses dias refleti sobre essas mulheres. Sobre como sua presença matriarca representava, e representa, conforto para toda a comunidade, como uma deusa que derramava sobre nós a segurança de podermos contar com o seu poder de ajuda e proteção. Esse tipo de “esperança”, digamos assim, se reflete sobre todas nós, mulheres negras, advindo de que sempre nos é esperado esse poder de “reparar o irreparável”.

De uma forma menos abstrata: é fácil entre rodas e conversas entre mulheres negras observar que é consenso entre nós o fato do quanto somos, desde muito cedo, condicionadas ao cuidado. Toda a mulher é condicionada ao cuidado, é verdade, mas a mulher negra em si têm isso profundamente reforçado não só pela questão escravocrata, mas também pela questão de que as mulheres negras são amplamente obrigadas a assumirem uma maternidade solo, não só pelo abandono do parceiro, como a sua morte em si. Cresci em um lar e uma comunidade extremamente matriarcal — o que não significa feminista.

Esse “dom” de cuidar, apesar de soar como algo bem romantico, pode se tornar um fato de extrema dor e sofrimento psíquico e físico — vide as doenças psicossomáticas. Além do próprio autoabandono, muitas vezes, em prol do outro. Remeto-me à lembrança dos tempos em que mainha fazia papa de farinha, apenas água, farinha de mandioca e açúcar — era o que se tinha. E diversas vezes ela não comia, dizia não estar com fome, mas hoje, consigo racionalizar que na verdade ela não o comia para que eu pudesse me alimentar. Esse tipo de “cuidado”, ela não oferecia só a mim, mas a todos da casa.

Quando reflito sobre isso, chego a constatação de como a nossa saúde, a saúde da população negra, é coletiva. Pois sempre tivemos mulheres fortes como nossas mães, vós e deusas com saberes ancestrais que nos guiaram e “abençoaram” nossa saúde. Percebo como esse “dom” de cuidar não só atinge a mim, mas a todas as mulheres negras que já conheci na vida. De como nos empurram responsabilidades “divinais”.

No meu caso, de pessoa com sofrimento psíquico, senti e refleti sobre esse condicionamento quando entrei em crise. Esperavam de mim uma cura divina. Esperavam de mim que fosse apenas algo leve, afinal, sou uma mulher forte. E isso acabava refletindo no modo de como eu me cuidava. Como eu poderia ser forte se precisava de cuidado? E durante muito tempo escondi meu estado até de mãe, e me isolei ao ponto de não conseguir sair daquele estado sozinha. Mas muitos não perceberam, afinal, sou uma mulher forte, não há com o que se preocupar. Agradeço à todas as outras mulheres negras, em especial Clara, minha companheira, e Janaína, mainha, que mais uma vez fez-se cura por mim. E, mais uma vez, mulheres negras que, em uma pequena coletividade, reproduziram cura. Mas isso não significa que tenha sido bom para elas, pois o ato de cuidar, em si, também é um ato de negação de si mesma.

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